segunda-feira, 24 de outubro de 2011

'Causos' de Polícia 3

A bola e o bicho

Quando menino não tive toda a liberdade que desejava, mas fui um garoto que conhecia as ruas, jogava gude, fura-pé, empinava arraia (pipa, como dizem os sulistas) e, principalmente, pegava muito baba, ao contrário da maioria da gurizada de hoje, que dedica quase todo o tempo à internet. Naquele época, nem imaginava que um dia seria jornalista e que a paixão pela bola iria ter influência marcante na minha vida profissional.
No começo, antes dos 10 anos de idade, contentava-me em apreciar do muro da minha casa, os meninos maiores jogando futebol na Rua 20 de Agosto (ainda sem asfalto), no Pau Miúdo, onde meu pai herdou um casarão do meu avô e lá moramos por alguns anos. Ainda novinho, descobri que a bola era uma figura democrática e logo tomei coragem para aplicar dribles desconcertantes em dona Eridan (minha mãe), que me aplicava marcação impiedosa para impedir que me misturasse “àquela molecada”, como definia de forma pejorativa.
Essa característica da mais famosa redondinha do planeta – que não escolhe coadjuvantes do seu espetáculo por classe social, diploma, religião ou etnia, e sim pelo fino trato de quem a ela possa dispensar, seja um vendedor de pastel ou qualquer outro garoto pobre – é que facilitou meu trabalho durante algumas das principais reportagens, especialmente sobre a máfia do jogo do bicho na Bahia.
“Você não é aquele menino magrelo que morava em Macaúbas e jogava com o pé esquerdo?”, com perguntas como essa muitas vezes fui reconhecido por seguranças da contravenção que, com certo orgulho, se aproximavam do jornalista para relembrar bons tempos, quando jogávamos bola no campo da invasão do Péla Porco (incrustada entre o Barbalho e a Sete Portas), no Beco do Cirilo (Estrada da Rainha), ou no campo do Tejo (Iapi), dentre tantos outros.
Graças a alguns companheiros de bola, tive informações exclusivas que me proporcionaram furos de reportagem. Num belo dia, um deles ligou para a redação de A Tarde e me revelou: “Jaci é a bola da vez”. Ele se referia a Jaciara Pereira Brito, viúva do idealizador da Roleta Grande Salvador (dissidência da poderosa Paratodos), Luís Carlos Teles Silva, o “Luisinho”, assassinado em 11 de outubro de 1991, ao parar numa sinaleira da Rótula do Abacaxi. Em dois anos a Roleta teve um crescimento surpreendente, daí ter se iniciado uma verdadeira guerra, que só acabou com o seu extermínio.
A decisão para matar Jaci teria sido anunciada pelo bicheiro conhecido como Turcão, integrante da máfia carioca, capitaneada por ele e pelo famoso Castor de Andrade, durante almoço numa churrascaria localizada na orla de Salvador, com bicheiros baianos. De posse da valiosa informação, resolvi procurá-la. Então, mantive contato com um dos seus seguranças e revelei a intenção de entrar na fortaleza da viúva, localizada no Largo do Tanque. Ele relutou, mas acabou aceitando me ajudar em nome dos nossos tempos de boleiro. Disse que largaria o trabalho às 16 horas daquele dia e que deixaria a porta encostada, mas advertiu que eu não deveria nem olhar para ele quando me aproximasse.
Ao ter acesso ao local, tomei logo um susto, pois um policial da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos que me conhecia estava sentado em uma cadeira escorada na parede de frente para a porta, com uma escopeta nas mãos. Ao me avistar também ficou assustado, mas aí outras pessoas ligadas ao jogo me cercaram e tive que me identificar, anunciando a intenção de falar com a bicheira.
O primeiro contato com ela (naturalmente avessa à imprensa) foi um pouco áspero, mas, com a intervenção de cunhados que liam matérias minhas sobre o jogo do bicho, aceitou conversar. Expus o que sabia, revelando até alguns detalhes sobre o almoço onde fora decidida sua sorte e, mesmo meio apavorada, decidiu enfrentar os mafiosos, além de acatar minha sugestão de marcar uma coletiva para o dia seguinte e denunciar o plano para sua eliminação. Isso foi feito e a entrevista aconteceu, com toda a mídia presente, estando a maioria dos repórteres com um exemplar do jornal A Tarde nas mãos, com a seguinte manchete: “Viúva desafia a máfia do bicho”.
Poucos dias depois, numa verdadeira operação policial, o Largo do Tanque foi cercado por viaturas, que acompanhavam os mafiosos conduzidos em carros pretos luxuosos a caminho da fortaleza. Ali, deram o ultimato: “Deixe o jogo ou morre”. E Jaci deixou o jogo. Anos mais tarde, quando produzia matéria especial intitulada “Bicho Solto” (publicada em 19 de novembro de 2006), para o emblemático caderno “Correio Repórter”, uma das melhores criações do jornalismo impresso baiano, tentei localizá-la, mas sem sucesso. Algumas pessoas me informaram que teria voltado a trabalhar na contravenção, fazendo jogo para a Paratodos. Infelizmente, não consegui mais encontrá-la. Quem sabe um dia...

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